segunda-feira, 6 de abril de 2009

A crise pós-Barroso ou a impotência do regime para gerar sucessões

Em Portugal, sempre que há uma queda de governo, sejam quais forem os motivos, o processo da sucessão nunca é linear. Não é líquido que o sucessor seja quem a maioria indica, poderá ser outro caso o Presidente da República (PR) não aceite o nome que lhe for indigitado pelo partido ou coligação maioritários, ou pode haver eleições antecipadas. Isto tudo independentemente de haver ou não uma maioria absoluta na Assembleia da República (AR). O processo é sempre demoradíssimo, há reuniões em série do PR, seja com o Conselho de Estado – cuja falta ninguém notaria se fosse extinto – seja com os partidos representados na AR, seja com a “nobreza” do regime, um conjunto de personalidades geralmente na reforma ou pré-reforma, de importância muito discutível e que, em regra, apenas se representam a si próprios.

Vem isto a propósito da crise aberta em 2004 com a demissão e "fuga" de Durão Barroso para Bruxelas. Ela constitui um exemplo elucidativo de como o nosso sistema político não se encontra ancorado em regras claras e neutras, mas dependente da discricionaridade de alguns actores - neste caso o Presidente da República - que tenderá a ser tanto maior quanto mais controversas forem as personagens envolvidas na sucessão. Se estivermos a falar de alguém como Pedro Santana Lopes (PSL), a incerteza e demora da decisão gera pressões, manifestações, indignações, diabolizações e o aparecimento de um número apreciável de histéricas e apocalípticas Cassandras. Fosse outra a personalidade aventada para o cargo de primeiro-ministro, alguém mais consensual no seio das chamadas “elites pensantes”, e teríamos certamente um processo de sucessão bem menos dramatizado.

Fui daqueles que se arrepiou com a perspectiva de ver PSL a chefiar o governo, mas sempre tive sérias dúvidas de que toda a rejeição, muito do foro emocional, ecoada na altura em todos os media, fizesse algum sentido. Admiti até que toda a histeria “anti-santânica”, pudesse vir a ter um efeito contrário ao que se pretendia e redundar num aumento da sua popularidade. Emergiu então com grande força o argumento peregrino que “a solução deverá ser política” – leia-se, o PR devia recusar o nome de PSL e equacionar outras hipóteses para primeiro-ministro ou convocar eleições. Isto é, o PR devia fazer uso da discricionaridade que a Constituição lhe atribui e recusar PSL apenas com base na repulsa que este suscitava em muitos (?), ninguém sabendo ao certo quantos. Esta era de facto a verdadeira razão, nunca explicitada e que se encobria com outras de duvidosa valia: “votei em Durão Barroso, não em Santana”, “o programa sufragado nas eleições de 2002 será esquecido por Santana”, “os partidos do governo sofreram uma enorme derrota nas europeias e já não dispõem de apoio popular”.

Quem utilizou estes argumentos sabia que estva a laborar num equívoco, mas fê-lo consciente e demagogicamente, conhecendo a força intuitiva daqueles. A questão é que o nosso sistema político-eleitoral se propicia a estes equívocos pela diferente forma de eleição e pela diferente legitimidade eleitoral que confere aos órgãos de soberania. Senão vejamos:

  • O PR é eleito por sufrágio universal numa eleição uninominal a 2 voltas, se necessário. É o órgão de soberania com maior legitimidade eleitoral mas, paradoxalmente é aquele que detém menos poderes.
  • Por outro lado, o governo, personificado pelo primeiro-ministro, é o órgão executivo por excelência, aquele que detém na prática mais amplos poderes, mas não é eleito directamente, ao contrário do que se pretende fazer crer. Ele emana da maioria que se formar na AR, cujos deputados são de facto eleitos no âmbito de um programa de governo, mas cuja força eleitoral é bastante mitigada pelo facto de o serem em processo de lista conjunta, para cuja formação é apenas relevante a decisão dos directórios partidários, jamais uma escolha prévia pelos eleitores do respectivo círculo.
  • O maior equívoco do sistema reside no facto de a generalidade dos eleitores considerar que em eleições legislativas estão a votar para o governo, a eleger um primeiro-ministro. Na realidade o eleitor vota sobretudo em função de uma relação de confiança ou afectividade com o líder de um determinado partido, muito mais do que com o próprio partido. Esta tendência para a fulanização é hoje reconhecida universalmente e o equívoco é deliberadamente amplificado pelas próprias campanhas, cada vez mais personalizadas nas figuras dos líderes partidários, que são inclusivamente apresentados como candidatos a primeiro-ministro. Na prática, os líderes mais não são do que candidatos a deputados à AR como cabeças de lista do respectivo partido por um determinado círculo eleitoral.
  • Ou seja, temos um sistema fundamentalmente partidocrático. Os partidos começam inicialmente por escolher o seu líder, então num Congresso, agora já em Directas abertas apenas a militantes, a maioria dos quais representantes de interesses obscuros do aparelho e das diferentes corporações partidárias (autarcas, sindicalistas, jovens, etc). O líder assim eleito será aquele que, em caso de vitória eleitoral do partido será indicado ao PR como pessoa a indigitar como primeiro-ministro.
  • Por sua vez, o líder e a sua entourage terão uma palavra determinante na escolha e hierarquização dos candidatos a deputados, dando naturalmente especial destaque à facção que o apoiou em Congresso ou nas Directas. Em caso de posterior vitória nas eleições, o grosso das “figuras notáveis” que encabeçam todas as listas e têm a eleição garantida, suspendem o mandato recebido e correm a ocupar um lugar no governo, na administração de uma empresa ou instituto público ou, pura e simplesmente, retornam à sua vida privada desde que mais bem remunerada.
  • Tem-se assim que o grupo parlamentar do partido do governo é geralmente de qualidade medíocre, porque composto pelos candidatos de 2ª e 3ª escolha que ascenderam para ocupar as vagas abertas pelos “notáveis”. A principal aspiração destas criaturas será recandidatarem-se no próximo sufrágio, de preferência subindo alguns lugares na lista do seu círculo, garantindo assim a eleição. A sua atitude no Parlamento nunca será de fiscalização e de crítica ao governo na defesa dos interesses de quem os elegeu, mas de completo seguidismo e subserviência perante quem os nomeou candidatos. A razão de fundo para a menorização e desprestígio do Parlamento reside portanto no processo de eleição e de escolha dos candidatos. Os eleitores, pelo seu lado, nunca sabem a quem pedir responsabilidades, pois nunca chegam a conhecer ou a saber sequer em que candidatos votaram, estando geralmente convencidos que votaram no candidato a primeiro-ministro.

É este o sistema que temos e a indicação de Santana ao então presidente Sampaio como a escolha do PSD e da coligação para primeiro-ministro e a sua indigitação por este, foi algo perfeitamente normal no âmbito da Constituição. Para este efeito, não releva que a escolha de PSL tenha sido feita em Congresso ou em Conselho Nacional do PSD: tal aconteceu na sequência de negociações com o aparelho e corporações partidárias, não como resultado de hipotéticas primárias validadas pelo eleitorado.

Ou seja, quem se indignou com a escolha de Santana deveria, para além de se apresentar como alternativa, contestar o sistema político que permitiu a sua ascensão e pugnar pela sua mudança radical. Assumindo a personalização de forma clara e elegendo uninominalmente o chefe do executivo; assumindo a necessidade de prestigiar o Parlamento e pondo os seus deputados a responder directamente perante quem os elege, só possível com círculos uninominais; estabelecendo primárias para decidir quais os candidatos de cada partido, retirando assim poder às corporações partidárias.

Mesmo assim, Santana poderia ser eleito primeiro-ministro, por muito que tal custasse a alguns – a democracia tem destas coisas, aparentemente irracionais para algumas “elites”...

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