Um dos conceitos que integra o pensamento politicamente correcto e hoje assumido como valor indiscutível é o da solidariedade. Todos somos solidários ou, pelo menos, propalamos aos quatro ventos que o somos. E ai de quem duvide ou de quem afirme que o é mais do que nós.
O meu propósito é analisar este conceito numa perspectiva de racionalidade económica, estando implícito que a grande maioria, senão a totalidade dos seres humanos, pautam as suas atitudes e comportamentos numa óptica de defesa do interesse próprio.
Pode afirmar-se que poucos serão de facto indiferentes a um tal valor. A solidariedade é algo que nos é intrínseco, faz parte da própria natureza humana e, passe o exagero, está no nosso código genético. É um sentido natural e espontâneo de colaboração mútua que vem desde o início da espécie humana, quando o homem vivia em pequenas comunidades tribais. Nestas comunidades, com uma envolvente geralmente hostil, o sentido de entreajuda era fundamental à sobrevivência e prosperidade do grupo. Cada membro, no seu próprio interesse, tendia naturalmente a ajudar os outros membros do grupo, prevendo que ele próprio poderia amanhã necessitar da ajuda destes. A divisão e especialização do trabalho que muito mais tarde se verificou e que esteve na base do crescimento económico e da criação de riqueza, talvez nunca tivesse acontecido sem o princípio da solidariedade e do sentido de entreajuda que se foi desenvolvendo desde os primórdios da humanidade.
Fácil é constatar que a solidariedade é um princípio virtuoso e que funciona perfeitamente ao nível da pequena comunidade. E isto decorre das relações de conhecimento pessoal entre os seus membros, que tornam indiscutível para todos as situações mais carenciadas a necessitar de apoio. A comunidade não o regateará e, no seu próprio interesse, investirá recursos para que os carenciados deixem de o ser com a brevidade possível. Um elemento do grupo recuperado poderá ser amanhã necessário para propiciar ajuda a outrém e, mais importante, será mais um a caçar, a pescar, a lavrar a terra, em suma, a contribuir para aumentar a riqueza da comunidade. A solidariedade funciona como um autêntico seguro de grupo de que todos beneficiam.
Aparentemente, as sociedades modernas, crescentemente urbanizadas e cada vez mais cosmopolitas, tornarão difícil a manutenção daqueles laços entre as pessoas, desde logo porque numa grande urbe não existe a teia de relações e conhecimentos pessoais da pequena comunidade. A motivação que qualquer um de nós tem para ajudar um desconhecido, cuja real situação de carência não se conhece nem se controla é, naturalmente, muito menor. No entanto, a nossa vida quotidiana, mesmo numa grande cidade, continua a desenrolar-se em pequenos círculos, sejam eles a família, o grupo de trabalho, o grupo de amigos da tertúlia, do bairro ou da associação recreativa e cultural.
Existe porém o fenómeno da massificação a que o princípio da solidariedade não ficou imune, criando-se uma natural tendência para aplicá-lo em grande escala. Não pondo em causa as boas intenções que presidiram inicialmente a um tal objectivo, a realidade veio a demonstrar que os resultados foram, em regra, o inverso do que se pretendia.
A aplicação da solidariedade a uma grande escala, seja uma região ou todo um país, torna impensável a sua execução directamente pelos cidadãos, como acontecia na pequena comunidade. De imediato prevalecem as teorias das economias de escala e da vantagem de concentrar a prestação dos serviços num “grossista”. Tratando-se de actividades sem fins lucrativos, facilmente se gera a unanimidade em concentrá-las no Estado ou em instituições por si geridas, as únicas entidades cujo único interesse é, supostamente, o bem comum. Mas como o Estado não tem recursos próprios, o financiamento de tais actividades só pode vir do bolso dos cidadãos por via de uma faculdade de que só aquele dispõe, a colecta coerciva de impostos.
Por definição, qualquer organização do Estado que se crie do zero nunca prima pela racionalidade, mas pela complexidade e pela tendência para o gigantismo. De imediato se extravasa o simples objectivo inicial e se criam outros fins, geralmente desfazados da realidade e das verdadeiras necessidades sociais. Em pouco tempo, estarão no terreno pesadas estruturas burocráticas que, a prazo, mais não servirão do que para se justificar a elas próprias, tornando cada vez mais difícil e pouco transparente o acesso aos serviços que inicialmente se propunham prestar. Os colaboradores destes serviços andarão permanentemente assoberbados com a elaboração do mais perfeito programa integrado de combate à pobreza e à exclusão social, na definição dos seus múltiplos objectivos e na reivindicação dos mais sofisticados meios humanos e materiais para os levar a cabo. Entretanto, os necessitados esperam e desesperam nos guichets e vêem geralmente os seus pedidos de apoio recusados pela falta do impresso Modelo 5.345 ou pela falta de carimbo no mesmo da Junta, da Câmara ou do Ministério.
Todo este sistema complexo redundará na destruição pura e simples do princípio da solidariedade, mesmo ao nível do âmbito em que ela funcionava, a pequena comunidade. As pessoas de maiores recursos, potenciais e antigos benfeitores deixam de o ser, dado que o Estado já lhes retira impostos para esse fim. Ao seu confrade de dominó na Associação Recreativa do bairro já o dono do talho recusou apoio, muito embora conheça perfeitamente as suas carências. Sugeriu-lhe que se candidatasse ao rendimento mínimo, de que a sua empregada doméstica já beneficia, tendo-se aproveitado para o efeito dos bons ofícios de um cunhado que trabalha na Segurança Social.
Como os benfeitores deixam de conhecer os beneficiários, não têm qualquer incentivo em definir a ajuda mais adequada para a sua reintegração social. Estes, por sua vez, não estando sujeitos ao controle daqueles, que antes gastavam tempo e recursos a ajudá-los e por isso pretendiam a sua rápida integração e independência, deixam de ter qualquer motivação para crescer e evoluir, resignando-se a uma vida de eterna subsídio-dependência.
Assim se cria uma sociedade cada vez mais egoísta e alheia à miséria do seu semelhante. Os grandes beneficiários são os profissionais da pobreza, os que justificam a gigantesca estrutura criada para o seu combate. Combate esse que jamais pretenderão vencer, dado que a pobreza constitui a sua reserva de mercado e convém portanto eternizá-la. Se a solidariedade é um valor ético que deve representar para todos nós uma forma de estar na vida, para os profissionais da pobreza ela é um modo de vida.
O meu propósito é analisar este conceito numa perspectiva de racionalidade económica, estando implícito que a grande maioria, senão a totalidade dos seres humanos, pautam as suas atitudes e comportamentos numa óptica de defesa do interesse próprio.
Pode afirmar-se que poucos serão de facto indiferentes a um tal valor. A solidariedade é algo que nos é intrínseco, faz parte da própria natureza humana e, passe o exagero, está no nosso código genético. É um sentido natural e espontâneo de colaboração mútua que vem desde o início da espécie humana, quando o homem vivia em pequenas comunidades tribais. Nestas comunidades, com uma envolvente geralmente hostil, o sentido de entreajuda era fundamental à sobrevivência e prosperidade do grupo. Cada membro, no seu próprio interesse, tendia naturalmente a ajudar os outros membros do grupo, prevendo que ele próprio poderia amanhã necessitar da ajuda destes. A divisão e especialização do trabalho que muito mais tarde se verificou e que esteve na base do crescimento económico e da criação de riqueza, talvez nunca tivesse acontecido sem o princípio da solidariedade e do sentido de entreajuda que se foi desenvolvendo desde os primórdios da humanidade.
Fácil é constatar que a solidariedade é um princípio virtuoso e que funciona perfeitamente ao nível da pequena comunidade. E isto decorre das relações de conhecimento pessoal entre os seus membros, que tornam indiscutível para todos as situações mais carenciadas a necessitar de apoio. A comunidade não o regateará e, no seu próprio interesse, investirá recursos para que os carenciados deixem de o ser com a brevidade possível. Um elemento do grupo recuperado poderá ser amanhã necessário para propiciar ajuda a outrém e, mais importante, será mais um a caçar, a pescar, a lavrar a terra, em suma, a contribuir para aumentar a riqueza da comunidade. A solidariedade funciona como um autêntico seguro de grupo de que todos beneficiam.
Aparentemente, as sociedades modernas, crescentemente urbanizadas e cada vez mais cosmopolitas, tornarão difícil a manutenção daqueles laços entre as pessoas, desde logo porque numa grande urbe não existe a teia de relações e conhecimentos pessoais da pequena comunidade. A motivação que qualquer um de nós tem para ajudar um desconhecido, cuja real situação de carência não se conhece nem se controla é, naturalmente, muito menor. No entanto, a nossa vida quotidiana, mesmo numa grande cidade, continua a desenrolar-se em pequenos círculos, sejam eles a família, o grupo de trabalho, o grupo de amigos da tertúlia, do bairro ou da associação recreativa e cultural.
Existe porém o fenómeno da massificação a que o princípio da solidariedade não ficou imune, criando-se uma natural tendência para aplicá-lo em grande escala. Não pondo em causa as boas intenções que presidiram inicialmente a um tal objectivo, a realidade veio a demonstrar que os resultados foram, em regra, o inverso do que se pretendia.
A aplicação da solidariedade a uma grande escala, seja uma região ou todo um país, torna impensável a sua execução directamente pelos cidadãos, como acontecia na pequena comunidade. De imediato prevalecem as teorias das economias de escala e da vantagem de concentrar a prestação dos serviços num “grossista”. Tratando-se de actividades sem fins lucrativos, facilmente se gera a unanimidade em concentrá-las no Estado ou em instituições por si geridas, as únicas entidades cujo único interesse é, supostamente, o bem comum. Mas como o Estado não tem recursos próprios, o financiamento de tais actividades só pode vir do bolso dos cidadãos por via de uma faculdade de que só aquele dispõe, a colecta coerciva de impostos.
Por definição, qualquer organização do Estado que se crie do zero nunca prima pela racionalidade, mas pela complexidade e pela tendência para o gigantismo. De imediato se extravasa o simples objectivo inicial e se criam outros fins, geralmente desfazados da realidade e das verdadeiras necessidades sociais. Em pouco tempo, estarão no terreno pesadas estruturas burocráticas que, a prazo, mais não servirão do que para se justificar a elas próprias, tornando cada vez mais difícil e pouco transparente o acesso aos serviços que inicialmente se propunham prestar. Os colaboradores destes serviços andarão permanentemente assoberbados com a elaboração do mais perfeito programa integrado de combate à pobreza e à exclusão social, na definição dos seus múltiplos objectivos e na reivindicação dos mais sofisticados meios humanos e materiais para os levar a cabo. Entretanto, os necessitados esperam e desesperam nos guichets e vêem geralmente os seus pedidos de apoio recusados pela falta do impresso Modelo 5.345 ou pela falta de carimbo no mesmo da Junta, da Câmara ou do Ministério.
Todo este sistema complexo redundará na destruição pura e simples do princípio da solidariedade, mesmo ao nível do âmbito em que ela funcionava, a pequena comunidade. As pessoas de maiores recursos, potenciais e antigos benfeitores deixam de o ser, dado que o Estado já lhes retira impostos para esse fim. Ao seu confrade de dominó na Associação Recreativa do bairro já o dono do talho recusou apoio, muito embora conheça perfeitamente as suas carências. Sugeriu-lhe que se candidatasse ao rendimento mínimo, de que a sua empregada doméstica já beneficia, tendo-se aproveitado para o efeito dos bons ofícios de um cunhado que trabalha na Segurança Social.
Como os benfeitores deixam de conhecer os beneficiários, não têm qualquer incentivo em definir a ajuda mais adequada para a sua reintegração social. Estes, por sua vez, não estando sujeitos ao controle daqueles, que antes gastavam tempo e recursos a ajudá-los e por isso pretendiam a sua rápida integração e independência, deixam de ter qualquer motivação para crescer e evoluir, resignando-se a uma vida de eterna subsídio-dependência.
Assim se cria uma sociedade cada vez mais egoísta e alheia à miséria do seu semelhante. Os grandes beneficiários são os profissionais da pobreza, os que justificam a gigantesca estrutura criada para o seu combate. Combate esse que jamais pretenderão vencer, dado que a pobreza constitui a sua reserva de mercado e convém portanto eternizá-la. Se a solidariedade é um valor ético que deve representar para todos nós uma forma de estar na vida, para os profissionais da pobreza ela é um modo de vida.
Em síntese, se a solidariedade é na pequena escala um princípio virtuoso e enriquecedor, quando aplicada em grande escala e com a intermediação do Estado, directamente ou via Instituições ditas Particulares de Solidariedade Social, gera fatalmente o círculo vicioso da pobreza.
(*) Publicado inicialmente no jornal "O Comércio do Porto", Setembro de 2004
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