segunda-feira, 8 de julho de 2013

Um País suicidário e sem emenda (*)

Pois é, são as elites que temos, não apenas agora, mas desde a revolução dita liberal de 1820. Existem apenas em função do Estado, a que estão umbilicalmente ligadas e a ameaça de corte do cordão é, naturalmente, uma questão de vida ou de morte. Por isso resistirão, agora e sempre, a qualquer mudança que ponha em causa o status quo.
 
O “folhetim Portas” deve ser entendido nesta perspectiva. Podemos encontrar lógica em todas as teorias da conspiração que por aí se vão construindo, que elas não têm, como sempre, grande consistência. Desde atribuir ao Portas veia especulativa e fazê-lo beneficiário de “shortagem” com a queda no mercado que ele próprio provocou (pouco provável em alguém que, em pose blasée, já se vangloriou em não saber preencher cheques), à sua incapacidade em apresentar o famoso Guião para a Reforma do Estado, que provavelmente jamais conheceremos, passando por um repasto na Comporta “presidido” por Ricardo Salgado e onde se teria definido a grande estratégia para o País.
 
A questão é bem mais prosaica e tem sobretudo a ver com o verdadeiro conflito que atravessa de forma transversal a sociedade e que Vítor Gaspar e a Troika despoletaram com a política de ajustamento implementada. Não é uma luta de classes (é vê-las “irmanadas” na mesma causa aquando da última greve geral), mas uma luta de modelos económicos e, naturalmente, mexe com interesses. Gaspar atacou-os fortemente quando deu uma machadada na procura interna para equilibrar as contas externas, criando assim o melhor incentivo para que as empresas ganhem competitividade e diversifiquem mercados. Tinha do seu lado a economia dos bens e serviços transacionáveis, designadamente PMEs exportadoras que vão conseguindo competir internacionalmente, que se sentem melhor com uma moeda forte, sendo dos raros agentes económicos que dão um contributo positivo para o PIB. Não têm porém tempo nem estrutura para fazer o seu lobbying e a sua audiência na opinião pública é nula ou quase. Colocou contra si toda a economia rentista dependente da procura interna, da despesa pública e do crédito, que vai das grandes empresas incumbentes com capacidade de pressão e de acesso aos media, à ainda afluente classe da função pública e todo o conjunto de pequenos negócios (vg., a restauração) que ela sustentava, passando pelos sindicatos da dita e, claro, por toda a plêiade de cortesãos, fora do poder mas que não desdenhariam a ele voltar. Estes, maioritariamente a atingir o prazo de validade, vão enchendo quotidiana e enjoativamente os écrans e as páginas dos jornais, erigidos como únicos opinion-makers, vociferando contra um governo liderado por um ex-jota sem pedigree e por um estrangeirado e que, “forte com os fracos”, ousou temerariamente afrontá-los amputando-lhes as reformas em 50% ou mais.
 
Paulo Portas tem-se protagonizado no governo como o representante efectivo desta economia rentista e vem tentando fazer a impossível quadratura do círculo: assumir-se hipocritamente como o partido do contribuinte, dos pequenos agricultores e pensionistas (que não têm sido penalizados, sublinhe-se), como o arauto da redução da despesa pública mas, na prática, obstaculizando reformas que visem alterações efectivas da política económica (vd. o affaire TSU) ou cortes visíveis na despesa, como se está a ver na sua intransigência em reduzir as reformas mais elevadas, embora se refira sempre às dos pobrezinhos e coitadinhos. A responsabilidade que lhe foi cometida de apresentar um “Guião para a Reforma do Estado”, representou um presente envenenado que ele se mostrou incapaz de digerir. Do que se vai conhecendo nos “mentideros”, as suas propostas são uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, os habituais lugares comuns escritos em “politiquês” e que não passam de belíssimas intenções destinadas apenas a títulos mediáticos. Mas para a Troika isso representava zero e o tempo jogava contra si. Chegar à 8ª avaliação sem nada de consistente para apresentar, revelaria o perfeito bluff de Portas enquanto governante numa situação de resgate internacional, incapaz de assumir que a austeridade é incontornável e durável e que deita por terra todo o discurso baseado em ficções destinadas apenas ao “mercado dos votos”.
 
Esta fixação dos políticos no “mercado dos votos” é também uma realidade incontornável dos nossos dias e representa quiçá o principal custo das democracias. Custo esse suportável numa conjuntura normal, mas incomportável num país debaixo de ajuda externa, necessitando de reconstituir a credibilidade perdida para um regresso permanente aos mercados. Como a fixação nos votos abstrai os políticos de todo o restante contexto, convencidos que ele se subordinará sempre aos ditames da política, assiste-se a atitudes totalmente irresponsáveis como a que Portas tomou, autêntica birra de catraio. Os mercados reagiram logo no dia seguinte, alertando com estrondo que o dinheiro não abunda e se pode tornar caríssimo e incomportável. E foi preciso esse alarido para assistirmos a estas justificações caricatas, bem demonstrativas da inconsciência da maioria dos políticos e da sua deficiente ou nula percepção do buraco em que o País está metido. A outro nível e de quem seria de esperar uma maior clarividência, releva a cegueira dos ódios figadais e assiste-se a esta ridícula (e deliberada?) confusão entre volatilidade dos mercados e despesa pública.
 
Neste momento Portas está isolado e mesmo a extrema benevolência de que goza nos media – foi muito engraçado assistir às reacções no dia da sua demissão, as tentativas insidiosas de culpabilizarem principalmente Passos Coelho – irá fatalmente esgotar-se. Mas bem pior, erodiu a sua base de apoio pondo o partido em polvorosa, com o aparelho a antecipar já as penalizações eleitorais pela imputação ao CDS do ónus da crise política. Para além de ter o parceiro de coligação a ranger os dentes e a ameaçar em surdina com o desfazer de várias coligações locais, o que varreria o CDS do mapa autárquico.
 
Quaisquer “pazes” que eventualmente se venham a fazer, se Portas permanecer no governo jamais se restaurará a relação de confiança exigível numa coligação e que foi irremediavelmente minada. Como as eleições atrasariam o cumprimento dos objectivos definidos com a Troika, elas serão o último recurso e este governo terá de se manter. Como o PR “exige” a presença do líder do CDS no governo, Portas, esse grande estratego (!!!), pode ter cometido um hara-kiri político.
 
Enfim, as elites mantêm os vícios seculares que faliram o País várias vezes nos últimos 200 anos. Entre outras razões, porque os Sistemas e Instituições políticas têm denotado sempre capacidades escrutinadoras assaz débeis. A grande diferença face às falências anteriores, é o escrutínio cada vez mais implacável dos mercados globalizados. Isto, associado à escassez de capitais, vai forçar a mudança para um modelo económico mais sustentável. Por muito que estrebuchem os lobbies, “senadores”, “comentadores” e outras “elites”.
 
(*) Publicado inicialmente no Blogue Blasfémias

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