A grande crise (a que já se chame de Grande Recessão) que o mundo vive desde 2007, que teve como facto mais emblemático a falência da Lehman Brothers em 15 de Setembro de 2008 (fez agora três anos), teve como uma das componentes principais a securitização. De forma muito simples, isto foi a forma de empacotar um conjunto de créditos sub-prime, dar-lhe um rótulo de qualidade (através das agências de rating), e dessa forma conseguir passar o risco para o comparador das obrigações, permitindo que o mutuante original pouca preocupação tivesse com a capacidade do mutuário em cumprir as suas responsabilidades.
A origem desta técnica está associada ao crédito de habitação, tendo começado a ser utilizada em grande escala nos anos oitenta do século XX, nomeadamente nos países nórdicos. Contudo, o primeiro exemplo da utilização da técnica de securitização encontra-se no século XVIII, e teve como base obrigações emitidas pela monarquia francesa que rendiam um montante fixo até à morte da pessoa que beneficiava da anuidade. Essas anuidades rapidamente tornaram-se populares, principalmente junto de homens abastados com uma certa idade, já que garantiam um rendimento garantido para o resto da vida, numa altura em que não havia pensões. A monarquia gostava das anuidades porque recebia o dinheiro antecipadamente.
Havia, no entanto, um pormenor que abriu todo um novo campo de possibilidades: o comprador podia condicionar os recebimentos das anuidades ao fim de vida de outra pessoa, que não ele próprio. Este simples detalhe, permitiu que banqueiros de Genebra o seguinte negócio: escolhiam um determinado número de raparigas (por exemplo 30), que apresentassem características de puderem viver muito tempo, e compravam uma anuidade para cada um delas. Em seguida, agrupavam as anuidades, de modo a diversificarem o risco de uma acidental mortalidade precoce entre as raparigas, vendiam a cidadãos de Genebra título de crédito sobre as entradas de capital daí resultantes. Desta forma garantiam um lucro seguro, na medida que comprovam anuidades baratas ao governo francês, e revendiam-nas, a um preço mais alto, a investidores. Estes títulos de crédito rapidamente ganharam notoriedade, devido à boa reputação dos banqueiros de Genebra e porque tinham como subjacentes anuidades do governo francês.
Mas, o «cisne negro» (“black snaw”, na famosa expressão de Nicholas Taleb) aconteceu: a Revolução Francesa de 1789. A monarquia foi derrubada e o governo revolucionário começou atrasar os pagamentos das anuidades. Estes foram feitos, mas numa moeda bastante desvalorizada, o que obrigou os banqueiros de Genebra a entrarem em incumprimento, já que os títulos de crédito que emitiram estavam denominados em fracos suíços.
Este pequeno episódio permite, tirar três conclusões fundamentais, que se aplicam também à actual Grande Recessão. A primeira é que há muito gente envolvida nos mercados financeiros que não percebe grande coisa do que realmente se está a passar. Isto engloba gestores de fundos, brokers, especialistas, analistas, supervisores, reguladores, jornalistas, que funcionam sobre o efeito rebanho. Como todo mercado está a ir numa determinada direcção, eles também vão, o que numa primeira fase permite que uma determinada actividade se torne cada mais lucrativa, pelo aumento do preço dos títulos. Este aumento auto-sustentado, permite criar a ilusão a muitos dos participantes que são uns génios, quando na verdade apenas fazem parte de um grande rebanho que está a ser conduzido ao precipício.
A segunda nota, por contraposição à primeira, é que há sempre um pequeno número de pessoas que sabe perfeitamente o que se está a passar, e que a situação é insustentável. Na actual Grande Recessão o melhor exemplo é, em minha opinião, a resposta em Julho de 2007 de Chuck Prince, CEO do Citigroup, a um jornalista do Financial Times, que quando questionado sobre por que é o banco continuava a facilitar crédito para o financiamento de aquisições, afirmou «Quando a música parar, em termos de liquidez, as coisas vão ficar complicadas. Mas enquanto a música tocar, há que nos levantarmos e dançarmos. Nós ainda estamos a dançar».
A terceira, que decorre da segunda, é que quem percebe o que está acontecer, e no fundo, quem “comanda” os mercados, sabe que os governos acabaram sempre por intervir, já que não podem deixar ruir todo o sistema financeiro, devido aos fortes danos colaterais que isso acarretaria. Esta convicção, e esta certeza pelas experiências passadas, permitem que os mercados incorram em riscos elevados, deixando o mercado de ter o papel disciplinador que na maioria das vezes tem. É o chamado «risco moral», sendo que o papel disciplinador do mercado é entorpecido pelas repetidas intervenções governamentais.